sábado, 5 de janeiro de 2008

A primeira frase desinventa. Aquele cachorro só poderia estar perdido. O vermelho deforma; marcadamente o focinho. Seis olhos iguais em pares iguais, uma só luz, três interrupções, uma interpelação. Os desenhos amontoam-se em frenética desordem, quisera o menor dos desejos aprisioná-los, deveu ao ímpeto o susto, ele nunca admitiria, toda a calma e torpor. Não. Não era isso. Urgia uma invasão na luz e na névoa pela irrupção dos desenhos e da desordem, estavam em nova geometria, três pares, seis olhos, três ângulos, uma diagonal inteira, nove rastros luminosos despedaçados tangenciam eqüanimemente. O urro veio de repente e baixinho, coça muito neste calor, dois olhos, um par desigual. Começaria o jogo com as peças postas.
Ele nunca saía a esta hora a noite nunca vinha nele mas sempre aproximava-se cantou o primeiro bolero desafinou Ela riu desproporcionalmente não é aqui o lugar que estaria a essas horas mas também não é aqui o lugar que não estaria saberia se o fosse não sei mesmo se saberia sempre me surpreendo Eu nunca canto nesse tom Eu nunca ouço nesse tom eu não sei o que Ele está fazendo nessas horas eu sempre o via como um entardecer perpétuo é tudo muito perigoso minhas coxas mexem-se haverá a invasão daquelas sombras e uma tarde e uma noite e uma manhã mas é deveras perigoso sim essa dança vermelha me cansa vem mesmo do alto assim dir-se-ia mas a exatidão da vista a desvia e o desvio a perde e agora vem de baixo fitar é vê-la dos dois lados em sincronia cerrar os olhos é vê-la fora dos espaços que circunscrevem a última baforada se contorce como se musculatura houvesse e distendesse flui contorna refaz os começos imiscuíra-se antes e a diluição começava por que esperaria Daquele outra coisa que não essa parcimônia Tu iluminas apenas como uma condição para as sombras Eu que sou aquele não me comprometo mesmo com as sombras essa névoa é outra coisa e essa passagem também é outra tudo que poderia ser visto foi perdido por um contrato expresso de perdição são estas as horas é esta a invasão é deste delírico dançar que nos irmanamos tu que não é aquele assombra e vê e tu que é ela não vê porque és de não ver e teu negrume me permite ser mas eu que sou aquele não me importo.
O vermelho refaz. O desigual senta-se. Coça-se. Ele deveria estar perdido mesmo. Invade a geometria e mija fartamente, lambe-se, deita-se. O mijo se esvai e umidifica a névoa, condensa mil criaturas possíveis e cem mil impossíveis, queima tudo como uma lava de vísceras e descuido e como tal lava encrosta no assombro. Três pares já desfeitos fitam num mesmo comungar de tempo e espaço, e como se fosse igual o fitar, o que se poderia deixar de esconder como prenúncio de ver mostra-se, mas a crosta encobre. Mexe o focinho malemolentemente, diverte-se, existe o suficiente para saber que nem se trata de um jogo de impossíveis, late nervosamente, levanta-se e perfaz um contorno que se desfez, lenta e furiosamente molda figuras perdidas, o espanto o encobre, ele desdenha. Late uma última vez dentro da geometria, sai e encosta-se à parede.
Seis olhos sem pares. Um par à margem. Seis arrebatados na fluidez e na dissolução mais plena que desfaz o desfazer. Há uma suspensão, o vermelho não mais envolve. A luz espraia-se em novo rascunho, sem espaço e sem tempo, sem geometria. Ele que não é aquele entoa um novo bolero, abre-se inteiro para ser transpassado, a voz torna-se grave e aveludada, canta como gostaria de ter cantado quando era criança. A umidade e a névoa abrem-se também, o canto preenche os vazios e o vazio preenche a névoa, a umidade e a voz.
Ele diverte-se, late, olha tudo e vê, somente ele vê, e as coisas vistas ficam visíveis porque ele as viu. A noite invade e amalgama os viventes daquele lugar. Late mais uma vez, vê mais uma vez, fecha os olhos e o olhar, mexe o focinho, espanta a luz, adormece. E tudo parece estar no mundo mais uma vez.
Gato pardo, dia claro. Nunca um lugar. Fantasia de destino, fardo pífio. En-fado...
Uma nascença nas terçãs, choro não há, um menino de fraquezas e robustez. Vem pro quintal menino, miau miau teu já está, de ida não ia, Vou não, desejar nunca falta, falta nunca, miau miau menino. Uma toca em terra vermelha e áspera, uma pele de calango, cramunhão menino sabe, esquecido e já guardado, uma toca de vermelho áspero. Cada sol a barulheira, cada roda um rodar do menino em cada cheiro e cada cor, alegria em desavença. Desenbanhar menino, lago perto noite junto, alegria em concílio. Miau miau, corre corre, nunca chega, sempre busca. Menino atrevido pros muleques de lá, cada qual forma e cheiro, bolota terra molhada, largo e alto gota de orvalho, arbusto seco. Meu senhor me dê o dito, mulher nunca é de chegar mas de engasgo de enganar e de dizer e nunca chegar, menino não sabia pois pra saber se perdia menino, menino foi até o tempo curvar, menino e só depois de adiante nome posto vida morta, mas menino vento solto corre corre, terra áspera miau miau longa fronteira, curva distante, ampla porteira. Terreiro, bolota, arbusto seco, menino, miau miau, bichos na moita, brincadeira de nunca acordar. Vai menino vai, corre corre bolota, vermelho céu, vermelha terra. Primeiro silêncio.
Mulher vermelho céu noite junto, dia sem barulho. Menino era de outro correr agora, uma outra febre, menino nem sabia da peste ainda, menino curva distante.
Menino sozinho, menino desejo de desejar. Um cabrito no céu, desfaz, o primeiro boizinho, refaz, miau miau, mulher de vermelho céu. Noite ida, menino dentro, ispinheira de esconder, gerante descer.
Carreira de fúria terreno sem fim curva longe, vento de dentro soprando noite dentro, menino fora. Vem cá menino, vem cá menino, vem cá menino...
Ido, nunca chegar, nunca lugar. Terravermelhamaciaida.
Banhado em maza.
Esquina escura, estranheza de chegar, barulho e vodka, cabelos soltos, fumaça, nunca chegar. O que será? Duplo com gelo. Suco? Porra, gelo e vodka. Porra de novo, tira a merda do gelo. Triplo. Olhos cansados olhar atento, mulher noite adentro, fumaça. Silêncio segundo. Daqui se pode ter o mundo inteirinho sabia? O mundo foi o último gole do copo. Cramunhão junto. Meu senhor me dê licença, foi um grito e outro grito, barulho, sem volta. Barulho, olhar de presa, nunca foi pego, curva já perto. Fogo? Sempre. Tinta demais. Por baixo da pele pedregulho grossamente triturado. Um toque. Macia ida.
Outra esquina, vodka ainda e cigarros, fogo sempre...
Espectro sorrateiro, volta pra cá cramunhão, diabos de cramunhão fujão.
Calçada suja barulho não mais.
Debaixo da calçada ele dormiu
.
Vocês estão em um filme do James Dean. Falou e saiu, deveria parecer misterioso e profético. Eu sempre me entretenho quando ele sentencia o futuro com ares de passado, soa sempre patético e sublime, e nele o patético é o mais sublime. Ocultara procura e desalento nos meses da peste, alucinado, gritava todos os dias um grito que sempre deveria ser ouvido do quinto ao terceiro andar do prédio de sua morada, essa precisão redimia o desespero, e a ele sempre aprouvera o desespero, mas nunca o descontrole. Nunca escrevia, descrer já era um vício velho e descrer na possibilidade de dizer era pra ele um mimo. Falava apenas quando de saída, tudo nele estava inelutavelmente saindo. Um saco aberto, um vão. Nunca fora possuído por mulher, mas entendia de gestos e cheiros, farejava tudo que queria e então tornava-se arquitetonicamente gótico, pululavam arestas. Ele era engraçado. Ele era triste.
Suas sombras cobriam a todos e todos amavam as sombras em sua companhia, mimético parceiro de tempestades e eventos glaciais, irmão das tormentas em mar bravio.
Vinha o riso toda noite e toda manhã vinha a dor, a beleza nele sempre chegava ao entardecer e à aurora. O olho esquerdo era arrebol e crepúsculo, o direito era vazio. Não era uma criatura de corpo completo, não necessitava de corpo, dois olhos, um excedente, meio ouvido, duas bocas e o resto eram mãos. Mais nada.
Nos ínterins de seu silêncio falava em conseguir um cachorro, branco e perdigueiro, ou quem sabe cinza e altivo. Ele latia melhor que a maioria dos cachorros e mordia melhor também. Aguará a vodka sempre posta. Fumava tanto e tão freqüente que não se sabia se ele era fumaça em parte.
Os meses de peste eram calmos para ele. Contou que perdera um filho, deu dois goles na vodka, o espanto causado era falso, como tudo nele. Tudo era legítimo e veraz nele. Nenhuma desconciliação. Dormia e acordava, nada era desavindo.
Ele perdeu o nome muito novo ainda. Entrava em todos os lugares, todos o conheciam e amiúde deviam algo a ele, era charmoso passear entre demônios e sua companhia agradabilíssima. Falara, então, sortilégios só com gentileza, saía. Lorca o deprimia, sempre pensava em besouros e pequenos beija-flores. Belo e soez. Perdido. Perdição. Ato possível. Arcabouço vazio. Impossível por petulância.
Vivia sozinho, nada podia existir daquela forma, compartilhava dos outros, de todos os outros, e sua solidão era comovente. Falava de filmes, sempre lembrando bem mais da luz e da sombra conseqüente na cena descrita, disse que três corriam e que a luz tremulava, disse que dois sentavam-se juntos e as sombras encobriam, todos tinham esquecido, mas ele falara de três em uma casa onde a luz estava suspensa e havia muita opacidade, ninguém lembrava.
Sempre dizia nevoento quando queria dizer algo importante.
No quinto dia contou três histórias fantásticas. Um feiticeiro o visitou e trouxe consigo um negro invisível e sete loções para sete dias mal agoureiros, havia uma mulher também, sempre a mesma, que o arrebatava e o revelava, essa mulher vestia-se de claridade e tinha um esconderijo nas mãos, por fim falou de um cachorro que desinventava as pessoas e era muito traquinas. Bebeu vodka mais uma vez. E todos pensaram, ele é um feiticeiro, uma mulher e um cachorro.
Sempre encontrava o insólito e muitos diziam que o insólito só habitava o mundo para poder ser reconhecido por ele. Ele vivia de dar nomes, como um deus nonsense. Sabia como entrar escondido no circo e sentia cheiro de elefantes.
Calou-se muito tempo. Seus olhos apagaram e acenderam. Poucos ousavam olhar seus olhos, havia um remoinho e um buraco. Ele sorria, sorria muito. Os que estavam com ele sempre iam e vinham, eram sempre uma passagem e ele sempre estivera em trânsito.
De peste em peste ele era a redenção de uma caduquice qualquer, mas duvido que se pensasse tanto, alguns seres não se pensam. Ele apenas sabia, era daqueles de saber, não se dizia nada, mas ele sabia, como no dia que falou em James Dean.
Andava meio torto à feição de um trágico antigo, desses velhos, mancos e cegos. Rodopiava quando não se esperava, um dia bebeu bastante com um francês que lhe propusera coisas e sonhos. Voltava sempre bêbado contando as coisas que não podiam ser.
Eu o tratei com afeto certa vez, ele sorriu e me ignorou. Eu o vi apenas uma vez e foi o bastante. Estou dentro do cotidiano, mas por vezes manco de um pequeno vislumbre dele. Ele é sempre excessivo, em mim é um arroubo. Eu o vi e o esqueci, e por causa apenas desse esquecimento eu vivo ainda. Sempre perguntei, sem saber, por que James Dean?
Ninguém nunca soube, mas nós estávamos em um filme de James Dean.