sábado, 5 de janeiro de 2008

Vocês estão em um filme do James Dean. Falou e saiu, deveria parecer misterioso e profético. Eu sempre me entretenho quando ele sentencia o futuro com ares de passado, soa sempre patético e sublime, e nele o patético é o mais sublime. Ocultara procura e desalento nos meses da peste, alucinado, gritava todos os dias um grito que sempre deveria ser ouvido do quinto ao terceiro andar do prédio de sua morada, essa precisão redimia o desespero, e a ele sempre aprouvera o desespero, mas nunca o descontrole. Nunca escrevia, descrer já era um vício velho e descrer na possibilidade de dizer era pra ele um mimo. Falava apenas quando de saída, tudo nele estava inelutavelmente saindo. Um saco aberto, um vão. Nunca fora possuído por mulher, mas entendia de gestos e cheiros, farejava tudo que queria e então tornava-se arquitetonicamente gótico, pululavam arestas. Ele era engraçado. Ele era triste.
Suas sombras cobriam a todos e todos amavam as sombras em sua companhia, mimético parceiro de tempestades e eventos glaciais, irmão das tormentas em mar bravio.
Vinha o riso toda noite e toda manhã vinha a dor, a beleza nele sempre chegava ao entardecer e à aurora. O olho esquerdo era arrebol e crepúsculo, o direito era vazio. Não era uma criatura de corpo completo, não necessitava de corpo, dois olhos, um excedente, meio ouvido, duas bocas e o resto eram mãos. Mais nada.
Nos ínterins de seu silêncio falava em conseguir um cachorro, branco e perdigueiro, ou quem sabe cinza e altivo. Ele latia melhor que a maioria dos cachorros e mordia melhor também. Aguará a vodka sempre posta. Fumava tanto e tão freqüente que não se sabia se ele era fumaça em parte.
Os meses de peste eram calmos para ele. Contou que perdera um filho, deu dois goles na vodka, o espanto causado era falso, como tudo nele. Tudo era legítimo e veraz nele. Nenhuma desconciliação. Dormia e acordava, nada era desavindo.
Ele perdeu o nome muito novo ainda. Entrava em todos os lugares, todos o conheciam e amiúde deviam algo a ele, era charmoso passear entre demônios e sua companhia agradabilíssima. Falara, então, sortilégios só com gentileza, saía. Lorca o deprimia, sempre pensava em besouros e pequenos beija-flores. Belo e soez. Perdido. Perdição. Ato possível. Arcabouço vazio. Impossível por petulância.
Vivia sozinho, nada podia existir daquela forma, compartilhava dos outros, de todos os outros, e sua solidão era comovente. Falava de filmes, sempre lembrando bem mais da luz e da sombra conseqüente na cena descrita, disse que três corriam e que a luz tremulava, disse que dois sentavam-se juntos e as sombras encobriam, todos tinham esquecido, mas ele falara de três em uma casa onde a luz estava suspensa e havia muita opacidade, ninguém lembrava.
Sempre dizia nevoento quando queria dizer algo importante.
No quinto dia contou três histórias fantásticas. Um feiticeiro o visitou e trouxe consigo um negro invisível e sete loções para sete dias mal agoureiros, havia uma mulher também, sempre a mesma, que o arrebatava e o revelava, essa mulher vestia-se de claridade e tinha um esconderijo nas mãos, por fim falou de um cachorro que desinventava as pessoas e era muito traquinas. Bebeu vodka mais uma vez. E todos pensaram, ele é um feiticeiro, uma mulher e um cachorro.
Sempre encontrava o insólito e muitos diziam que o insólito só habitava o mundo para poder ser reconhecido por ele. Ele vivia de dar nomes, como um deus nonsense. Sabia como entrar escondido no circo e sentia cheiro de elefantes.
Calou-se muito tempo. Seus olhos apagaram e acenderam. Poucos ousavam olhar seus olhos, havia um remoinho e um buraco. Ele sorria, sorria muito. Os que estavam com ele sempre iam e vinham, eram sempre uma passagem e ele sempre estivera em trânsito.
De peste em peste ele era a redenção de uma caduquice qualquer, mas duvido que se pensasse tanto, alguns seres não se pensam. Ele apenas sabia, era daqueles de saber, não se dizia nada, mas ele sabia, como no dia que falou em James Dean.
Andava meio torto à feição de um trágico antigo, desses velhos, mancos e cegos. Rodopiava quando não se esperava, um dia bebeu bastante com um francês que lhe propusera coisas e sonhos. Voltava sempre bêbado contando as coisas que não podiam ser.
Eu o tratei com afeto certa vez, ele sorriu e me ignorou. Eu o vi apenas uma vez e foi o bastante. Estou dentro do cotidiano, mas por vezes manco de um pequeno vislumbre dele. Ele é sempre excessivo, em mim é um arroubo. Eu o vi e o esqueci, e por causa apenas desse esquecimento eu vivo ainda. Sempre perguntei, sem saber, por que James Dean?
Ninguém nunca soube, mas nós estávamos em um filme de James Dean.